30 de nov. de 2015

A lama tóxica da política


A pergunta é recorrente: depois dos milhões do mensalão, dos bilhões do petrolão, da lama tóxica que escorre pelo rio Doce, matando a vida marinha, das prisões do senador Delcídio Amaral e do banqueiro André Esteves, com origem na  lama moral que escapa dos dutos da Petrobras, correremos o risco de ver nova enxurrada de corrupção? Para sermos mais precisos, a campanha eleitoral de 2016, voltada para a eleição de 5.568 prefeitos e cerca de 60 mil vereadores, usará, mais uma vez, recursos ilegais, dinheiro por baixo do pano, falcatruas e outros meios tradicionalmente manipulados por candidatos? Infelizmente, a resposta é sim. Mesmo que a batelada de candidatos tenha a porteira fechada para doações de recursos por parte de pessoas jurídicas.
A confirmação do uso de Caixa 2 se ancora em alguns fatores. Primeiro,  não se muda a cultura política por decreto. Não será da noite para o dia que sairemos da barbárie em matéria de campanha eleitoral para um avançado estado civilizatório. Segundo, o Judiciário e o Ministério Público, mesmo com seus sistemas de controle, investigação e decisão mais apurados e tempestivos, não serão suficientes para barrar as correntes de corrupção que se espalham nas três instâncias da Federação. Como bem lembra o juiz Sérgio Moro, sem a consciência da representação política, o que a Justiça faz para conter a corrupção equivale a uma pregação no deserto. Ele está certo. A corrupção é mazela arraigada no ethos nacional, desde os tempos primeiros da colonização. Pode diminuir, como se espera, mas não será extirpada in totum. Haverá sempre um amigo aqui, outro  acolá, dispostos a ceder meios de transporte, combustível, a ajudar os amigos candidatos com material gráfico etc.
Portanto, as campanhas municipais ainda contarão com a alavanca de empuxo principalmente nas áreas de logística, trabalho de campo (cabos eleitorais) e materiais gráficos. O que se pode garantir é a maior transparência dos processos, um poder crítico mais agudo, que deverá transparecer na denúncia de campanhas ricas e exuberantes, no apontamento de exageros nas estruturas e equipes que trabalharão para os candidatos. Teremos uma campanha mais curta, em um tempo de 45 dias, com 35 dias de propaganda eleitoral. Esse encurtamento já será um passo adiante, eis que os postulantes poderão aproveitar melhor o tempo( curto) para expor seu pensamento e cortar os trololós da linguagem tatibitate( monocórdica, onomatopéica, evasiva) geralmente adotada. 
Em suma, no centro dos lamaçais que escorrem pelos vãos da República, continuaremos a conviver, apesar de em quantidades menores, com manobras espúrias e incestuosas entre protagonistas da política. Norberto Bobbio, em seu clássico “O Futuro da Democracia”, já dizia que o poder invisível é uma das promessas não cumpridas pelos sistemas democráticos. Esse poder consiste nas ações incontroláveis de grupos que agem nas entranhas da administração pública, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a “peitar” a estrutura formal de mando. Exemplo ocorre quando a presidente da República ou seu antecessor dizem que nunca souberam de corrupção na esfera da Petrobras.
O fato é que esse poder age nas sombras da administração. Sua origem se localiza nos Estados absolutos, quando as decisões eram tomadas pelos arcana imperii, autoridades ocultas que se amparavam no direito de avocar as grandes decisões políticas, evitando a transparência do poder. Um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, formas de controlar os limites do poder estatuído. No absolutismo, o princípio consistia na tese de que é lícito ao Estado o que não é lícito aos cidadãos. Nossas democracias representativas conservam contrafações do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e as redes invisíveis de poder.
Os fenômenos se expandem criando novos tipos de ilegalidade, desenhando uma aética nas relações políticas, fomentando o clientelismo e a apatia das massas. Sempre foi assim por nossas bandas, mas, nos últimos tempos, a tecnologia sofisticada tem conseguido driblar as afinadas lâminas dos controles. Não por acaso, as taxas de credibilidade na política e nos governantes decrescem, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam e o resultado se mede pelo atraso no processo de modernização política e social.
Em suma, iremos conviver, por bom tempo, com o poder invisível e suas nefastas consequências. Estamos vendo gente graúda na cadeia. Mas tal visão não significa expurgo completo dos conluios. Não será surpresa se, mais adiante, batermos de frente com novos escândalos. Estamos abrindo o corpo putrefato da política. Os órgãos de controle e o Judiciário funcionam, nesse momento, como pinças e agulhas que lancetam tumores malignos. Esses cancros serão eliminados quando atingirmos estágio civilizatório elevado. Coisa para duas ou três gerações. Para tanto, o ponto de partida é a revolução educacional. Que pode elevar a condição de povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos (preferidos pelos governantes) para um patamar  avançado de democracia, que abrigará cidadãos ativos, conscientes, participativos.
Carecemos de  cidadania ativa, aquela que John Stuart Mill defendeu em suas Considerações sobre o Governo Representativo. Não adianta fazer reforma política - mudar sistema de voto, de representação, fidelidade partidária, - se os súditos se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim. A promessa da democracia - de educar os cidadãos - é o compromisso prioritário para que o Brasil possa sair do estágio pré-civilizatório que se encontra em matéria de cidadania política. Quando todos os brasileiros estiverem comendo do mesmo prato cultural, inseridos no banquete da Consciência cidadã, o nosso ethos terá orgulho do país.  
Por Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.

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